QUE FAZER NESTE LONGO NAUFRÁGIO?

08-12-2012 00:21

                Os portugueses estão entregues a si próprios. O mesmo ocorre com os outros europeus, sobretudo os dos países intervencionados. Mas, mesmo os alemães e os finlandeses, embora não sabendo ainda, também não ficarão incólumes às consequências do longo naufrágio em que a União Europeia mergulhou. Resistimos sozinhos na água fria e tumultuosa. Rodeados pelos detritos da catástrofe, pelos corpos dos que já desistiram ou foram vencidos pelas vagas. O comandante e seu séquito já deixaram a nau. E desta vez nem tiveram a desculpa de 1808, pois agora Portugal já não tem a retaguarda de um império. Os portugueses foram abandonados pelo seu Governo e pelas outras instituições que representavam a sua soberania coletiva. Na espuma revolta, abundam páginas soltas de uma Constituição rasgada, resíduos de uma confiança num contrato social que já deve jazer bem no fundo do mar.

                O pior numa desgraça é a sua ausência de sentido. Os náufragos chegarão à linha da costa e a primeira tarefa será a de estabelecerem os contornos de uma narrativa que lhes ilumine a compreensão do passado e abra pistas para decifrar caminhos que nos permitam merecer o futuro. A monstruosa explicação “moral” de que os povos do Sul da Europa “viveram acima das suas possibilidades” insulta não só a inteligência, como ofende as condições de vida de um povo que jamais atingiu sequer o rendimento médio dos cidadãos da União Europeia.

                Que sejam governos a dar lições de ética aos seus povos é outra singularidade ignóbil. Quando a presente crise rebentou, em 2008, nos EUA, os governos ocidentais salvaram, sem hesitação, os seus bancos e outros segmentos do sistema financeiro global. A Irlanda, que tinha um registo de finanças públicas muito melhor do que o da Alemanha, afundou-se para resgatar a desmesura dos seus banqueiros. Em Portugal, um governo do PS endividou o país para salvar o BPN, gerido por malfeitores escondidos sob o emblema do PSD.

                FOI ASSIM EM TODO O MUNDO ocidental: as dívidas de um setor financeiro privado foram transferidas para os cidadãos contribuintes. Num golpe de mágica, os vícios privados foram transformados em dívida pública, sob a desculpa do “risco sistémico”, com a exceção do pequeno mas orgulhoso povo islandês, que deixou morrer os seus bancos tóxicos para não perder a sua liberdade.

                Mas há limites para tudo: não acrescentem à socialização da dívida a externalização da culpa. Não podemos consentir que governos incompetentes queiram também amarrar a nossa alma, depois de nos expropriarem o corpo. A culpa dos gastos inúteis para satisfazer clientelas, a culpa ainda maior por uma União Económica e Monetária imperfeita, armadilhada como uma bomba relógio contra os europeus e as suas poupanças, não é dos cidadãos. De Lisboa a Berlim, ela pertence aos governos dos partidos que agora nos querem salvar promovendo o desemprego, a pobreza e a emigração como boas políticas públicas.

                AS INSTITUIÇÕES que nos governam traíram a nossa confiança. Sentimo-nos aturdidos pela deriva. Contudo, nunca os europeus estiveram tão unidos, face à imensa tragédia que cresce no horizonte ameaçando engoli-los numa perigosa e desastrosa fragmentação. Mas essa comunidade de destino é ainda invisível para muitos. Temos de (n)os acordar desta espécie de “matrix” ilusória que (n)os adormece. Não foi a unidade europeia que falhou, mas sim este modo de construir a Europa a partir dos Palácios e das Bolsas, com um total desprezo pelos cidadãos, tratando-os como meros consumidores, numa lógica medíocre de pão e circo.

                Chegou a hora de, como portugueses e europeus, vencermos as barreiras ilusórias das línguas e dos preconceitos. Há um caminho incerto pela frente. Mas é apenas ele que nos separa de sermos empurrados para dentro desse buraco negro que resultaria do colapso da União Europeia.

 

PS: Agradeço a Maria Filomena Molder e Irene Pimentel, bem como aos colegas hoje reunidos na Universidade Nova de Lisboa, a sugestão do tema para este ensaio.

 

(Revista VISÃO, 6 de dezembro de 2012, p. 34, Viriato Soromenho-Marques)